sábado, 26 de maio de 2012


Sentimento do mundo


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.



    A adversidade tão frequente em Drummond se apresenta na última estrofe em uma reunião de contrários, que seria semanticamente um paradoxo. Só que no caso este “paradoxo” não cria um choque, pois o leitor entende de imediato que o amanhecer na guerra não traz o sentido de esperança normalmente associado a esta palavra.

    As imagens de manhã e noite são corriqueiras na literatura, no entanto o desfecho do poema causa efeito pela identificação de manhã com noite, graças ao significado negativo de noite e formalmente pela ausência do verbo e pelo uso enfático da palavra (mais noite que a noite), como se a primeira noite fosse um adjetivo que qualificasse a segunda noite, que é substantivo.   





Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 24 de maio de 2012


Sociedade



O homem disse para o amigo:
— Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
— Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
— Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: — Que idiota.

— A casa é um ninho de pulgas.
— Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.




   Neste poema, em que Drummond se afasta do lirismo para fazer uma análise do comportamento humano e uma crítica a certo tipo de conduta social, observemos que o efeito da estrofe final, típico de pequenas narrativas como o conto, se dá graças à inversão. Ou seja, o amigo que falava mal do outro volta sempre a sua casa, quebrando a expectativa e a coerência de suas palavras.  
    O texto narrativo, com direito à diálogo, funciona como uma anedota (com final surpreendente) ou fábula, para ilustrar um pensamento ou uma observação. Reparemos ain-da com a inversão traz  humor ao texto, pois o leitor na última estrofe dá um também um riso interno, ao saber que o amigo retorna toda quita-feira à casa que ele tanto criticara,





Marcus Vinicius Quiroga  

segunda-feira, 14 de maio de 2012




Construção




Um grito pula no ar como foguete.

Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.

O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

O sorveteiro corta a rua.



E o vento brinca nos bigodes do construtor.



    Reparemos no pequeno poema que cada verso só tem um verbo e que não há conectivos (conjunções, pronomes relativos, preposições) unindo os versos, com exceção do último. A ausência de conectivos e os períodos simples caracterizam um escrever primário, típico da criança, de quem está se iniciando na uso escrito da língua, no entanto Drummond e vários outros poetas se valeram desta construção para fins literários.

     A independência dos versos valoriza o que é dito em cada um deles e, por justaposição, vai acrescentando os fatos desta cena de construção, estimulando a visualização gradativa por parte do leitor.

      O último verso, em destaque, destoa dos demais pela surpresa da ação corriqueira e sem significado para a construção: o vento brinca nos bigodes. A coinstrução em si (barro, caliça, andaimes, placa) está no poema a serviço do acontecimento banal, que é o pequeno movimento dos bigodes do construtor.

     A câmara (digamos assim) se desloca da panorâmica para o close do detalhe: o bigode é a metonímia do homem. Humaniza-se a cena e a visão do eu poético.   

segunda-feira, 7 de maio de 2012


CARACTERÍSTICAS DA COMUNICABILIDADE NA POESIA



1-    TEMAS CONHECIDOS OU DO AGRADO

2-    VOCABULÁRIO FÁCIL

3-    SINTAXE FÁCIL, SEM INVERSÕES

4-    TEXTOS COM SENTIMENTO

5-    HUMOR

6-    IDENTIFICAÇÃO

7-    REFERÊNCIAS À REALIDADE EXTERNA

8-    PRESENÇA DO COTIDIANO

9-    USO DE IMAGENS SENSORIAIS

    10 - FATOR HUMANO, HUMANIZAÇÃO DAS HISTÓRIAS

    11 – PRESENÇA DE IDEAIS, BONS VALORES

    12 – LINGUAGEM SEM MUITAS IMAGENS

    13 – PALAVRAS CONCRETAS SIMBOLIZANDO IDEIAS ABSTRATAS

    14 – TEXTO DE TAMANHO CURTO OU MÉDIO

    15 – CONHECIMENTO DO REPERTÓRIO DO LEITOR

    16 – RITMO MAIS FÁCIL DE SER GRAVADO

    17 – LINGUAGEM ENXUTA, NÃO DISCURSIVA

domingo, 6 de maio de 2012


Toada do Amor


E o amor sempre nessa toada!
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
o teu pito está o infinito.






    Ainda que saibamos que no século o uso de figuras diminui muito, havendo até poetas de linguagem praticamente denotativa, há conotação não desapareceu. Não vamos metaforizar como no século XIX, mas não vamos impor o fim da metáfora, pois isto também seria falso.

   Reparemos aqui no segundo verso um “quiasmo”. Apesar do nome, é fácil entendê-lo.


Quiasmo

Figura de retórica baseada na simetria que é construída com quatro termos, dois dos quais geralmente repetidos, e sendo os dois últimos da mesma na natureza que os dois primeiros, mas apresentados invertidamente. O quiasmo dispõe os termos como num espelho e por isso é frequentemente representado por uma cruz ou pela sequência ABBA, como se pode exemplificar com os seguintes excertos:

"Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção!"

(Fernando Pessoa, Mensagem, "Os castelos", D. Afonso Henriques)

  
   
Ainda no seguinte exemplo, cada verso é iniciado por uma retoma do sintagma nominal do verso anterior, mantendo a estrutura sintática invertida, desdobrada em espelho, com a sequência SN (sujeito) + Verbo copulativo + SN (predicativo do sujeito):

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos.
E os meus pensamentos são todos sensações."
(Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, IX)
 


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.    No texto simples de Drummond, com linguagem coloquial, o uso de uma figura de retórica serve para mostrar a alternância  do sentimento amoroso e, portanto, melhor defini-lo.

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 2 de maio de 2012


POEMA DO JORNAL

O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A pena escreve.
A polícia dissolve o meeting.


Vem da sala de linotipos a doce música mecânica





    Eis um bom exemplo para nos lembrarmos das linguagens conotativa e denotativa, dizendo que, a princípio, a primeira se identifica com a linguagem poética. O título nos remete para o jornal e seu discurso objetivo, voltado para a informação, portanto, trata-se de um texto que se deseja compreensível e, de preferência, da mesma forma por todos. Já a poesia nem sempre se quer compreendida e,se o for, não o será de formas diferentes por diferentes leitores.

     Na primeira estrofe, há quatro versos que correspondem a manchetes de primeira página. Com exceção da conjunção “e”, não há conetivos. Os versos se sucedem curtos e informativos. Só no último verso aparece a metáfora “a doce música mecânica”, com sutil oposição entre doce e mecânica.Aqui temos a “intervenção poética” do autor em um texto basicamente denotativo.

    Queremos mostrar com isto que às vezes basta uma metáfora (mudança de sentido, pois linotipos não produzem música) para criarmos um poema.